Quando a resolução de problemas prejudica a segurança: lições da aviação - Parte 1.
- Comandante Bassani
- 11 de abr.
- 3 min de leitura
Por Comandante Bassani - ATPL/B-727/DC-10/B-767 - Ex-Inspetor de Acidentes Aéreos SIA PT. Email - voopessoal@gmail.com - Abr/2025 - https://www.personalflyer.com.br/

Na aviação, a segurança é um compromisso inegociável, sustentado por sistemas sofisticados e uma cultura de aprendizado contínuo. No entanto, paradoxalmente, a habilidade humana de resolver problemas pode, em certas circunstâncias, minar esse objetivo. Um artigo da Flight Safety Foundation e um estudo de 2001 da Universidade de Harvard destacam como a prática de "consertar e esquecer" — em vez de "consertar e relatar" — priva organizações da oportunidade de mitigar riscos e aprender com suas falhas operacionais.
O custo de soluções rápidas
O estudo de Tucker, Edmondson e Spear (2002) analisou equipes de enfermagem hospitalar e concluiu que a resolução de problemas de primeira ordem — corrigir uma questão imediatamente e seguir em frente sem documentação ou análise — impede o aprendizado organizacional. Na aviação, esse padrão tem implicações ainda mais graves. Um exemplo concreto é o incidente sério de 2022 investigado pelo BEA (Bureau d’Enquêtes et d’Analyses), envolvendo um Cessna Citation 525 e um-Embraer 170. A perda de separação entre as aeronaves foi causada por indicações errôneas de altitude, resultado de um sistema pitot-estático defeituoso no Cessna. Relatos indicam que os pilotos, pressionados por prazos, frequentemente evitavam registrar falhas no livro de bordo técnico, uma prática incentivada por uma cultura que priorizava a continuidade das operações sobre a segurança.
Esse caso ilustra como a resolução imediata de problemas, sem o devido reporte ou investigação, perpetua vulnerabilidades. Quando falhas não são documentadas, as organizações perdem a chance de implementar barreiras de segurança ou soluções sistêmicas, aumentando o risco de incidentes futuros.
Fatores que agravam o problema
Diversos elementos contribuem para essa abordagem de "consertar e esquecer":
Pressão por tempo - Assim como as enfermeiras do estudo de Harvard, pilotos e mecânicos na aviação muitas vezes carecem de tempo para relatar ou investigar problemas profundamente, focando em manter os cronogramas.
Falta de segurança psicológica - Amy Edmondson (2019), em The Fearless Organization, define segurança psicológica como um ambiente onde as pessoas se sentem à vontade para reportar erros sem medo de retaliação. No caso do Cessna, o BEA apontou que os pilotos temiam sanções, o que os desencorajava a registrar falhas.
Ausência de suporte sistêmico - Nancy Leveson (2012), em Engineering a Safer World, argumenta que a segurança deve ser integrada ao design de sistemas desde o início. Quando isso não ocorre, adicionar responsabilidades de segurança a papéis já sobrecarregados gera soluções improvisadas.
Caminhos para a Mudança
Mitigar esses riscos exige uma abordagem estruturada que valorize a resolução de problemas de segunda ordem — consertar e relatar. Algumas estratégias incluem:
Integração da segurança nos papéis - Como sugere o estudo de Harvard, relatar problemas deve ser parte explícita das funções dos profissionais, com tempo e recursos alocados para isso. Líderes podem definir metas claras, como o número de relatórios de segurança esperados por mês, ajustando cargas de trabalho para acomodá-las.
Cultura de comunicação aberta - Rhona Flin e Paul O’Connor (2017), em Safety at the Sharp End, destacam que equipes eficazes compartilham informações críticas e apoiam umas às outras. Criar um ambiente de segurança psicológica, como propõe Edmondson, envolve líderes que aceitam a falibilidade humana, incentivam perguntas e respondem de forma construtiva.
Empoderamento com recursos - Scott Geller (2016), em The Psychology of Safety Handbook, enfatiza que envolver a linha de frente na criação de soluções fortalece a cultura de segurança. Autonomia é positiva, mas deve vir acompanhada de treinamento e ferramentas para análises mais profundas.
Um novo paradigma
A aviação não pode se dar ao luxo de ignorar os ensinamentos de seus próprios incidentes. O artigo da Flight Safety Foundation reforça que "consertar e esquecer" é uma armadilha que compromete a resiliência organizacional. O caso da Cessna Citation e Embraer 170 é um lembrete claro: sem uma cultura que priorize o relato, o suporte adequado e a valorização do aprendizado, os riscos se acumulam silenciosamente.
Adotar a resolução de segunda ordem não é apenas uma questão de procedimento, mas uma mudança cultural. Ao garantir que a segurança seja um valor intrínseco às operações — e não um acréscimo às pressas —, as organizações podem transformar desafios em oportunidades de aprimoramento, protegendo vidas e fortalecendo seus sistemas.
Continua... Parte 2 na próxima semana.
Bons voos !
Fontes:
Flight Safety Foundation
Universidade de Harvard
BEA (Bureau d’Enquêtes et d’Analyses)
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