Consciência situacional na aviação - Fundamentos essenciais para pilotos profissionais
- Comandante Bassani
- 21 de nov.
- 7 min de leitura
Por Comandante Bassani - ATPL/B-727/DC-10/B-767 - Ex-Inspetor de Acidentes Aéreos SIA PT - www.personalflyer.com.br/ - captbassani@gmail.com - Nov/2025

Além de "saber o que está acontecendo"!
A consciência situacional (SA) é frequentemente descrita de forma simplista como "saber o que está acontecendo ao seu redor". Embora essa definição capture parte da realidade, ela fica significativamente aquém de uma compreensão completa do conceito. Segundo a definição amplamente aceita da Dra. Mica Endsley, reconhecida líder mundial em pesquisa sobre consciência situacional desde 1995, a SA é definida como "a percepção dos elementos ambientais em relação ao tempo ou espaço, a compreensão do seu significado e a projeção do seu comportamento futuro". Essa definição tri facetada estabelece o fundamento teórico que guia o treinamento em Crew Resource Management (CRM), conforme estabelecido pela EASA.
A importância prática da consciência situacional foi tragicamente exemplificada em janeiro de 2025, quando uma colisão em ar ocorreu entre um Bombardier CRJ 700 operado pela PSA Airlines e um helicóptero Sikorsky UH-60L do Exército dos EUA nas proximidades de Washington DC. Todos a bordo — 65 ocupantes da aeronave comercial e toda a tripulação do helicóptero — pereceram. A investigação preliminar revelou múltiplos indicadores de degradação da consciência situacional que não foram adequadamente gerenciados pela tripulação.
Os três pilares fundamentais da consciência situacional
O modelo de Endsley, adotado internacionalmente pela EASA e pela CAO em suas publicações sobre segurança operacional, identifica três componentes essenciais:
Nível 1 - Percepção
A percepção envolve a coleta de informações sensoriais do ambiente. Porém, um aspecto crítico frequentemente negligenciado é que os sentidos humanos apresentam limitações significativas quando em voo. Ilusões visuais durante procedimentos de aproximação — como a ilusão de pista estreita ou pista larga — podem induzir pilotos a perceberem sua posição vertical de forma incorreta. Durante operações noturnas e em condições meteorológicas de instrumentos (IMC), a probabilidade de erros perceptivos aumenta exponencialmente.
A SKYbrary, repositório colaborativo da EASA, enfatiza que a percepção envolve quatro componentes principais:
Consciência ambiental - Conhecimento de outras aeronaves, comunicações ATC e condições meteorológicas
Consciência de modo - Configuração da aeronave e estado dos sistemas de piloto automático
Orientação espacial - Posição geográfica e atitude da aeronave
Consciência de sistema - Status dos sistemas da aeronave
Horizonte temporal - Gerenciamento de tempo (combustível, fatores críticos em emergências).
Nível 2 - Compreensão
A compreensão significa que o piloto entende o significado da situação se a percepção for precisa. Este é um ponto de falha frequente, especialmente entre pilotos em início de carreira e durante treinamento. Na investigação do acidente de Washington DC, houve uma discrepância não resolvida de altitude entre o altímetro do piloto (mostrando 300 pés) e do instrutor (mostrando 400 pés). Nenhuma comunicação ocorreu para esclarecer essa discrepância — uma falha clara no componente de compreensão compartilhada.
Nível 3 - Projeção
A projeção — a capacidade de antever o comportamento futuro — é o componente mais desafiador da consciência situacional profissional. Um exemplo clássico usado em treinamento CRM internacionalmente é o cenário rodoviário: você dirigi a 80 km em uma rodovia congestionada quando subitamente o tráfego à frente começa a brecar bruscamente. Após parar completamente, qual é a próxima coisa importante? A resposta correta é verificar o espelho retrovisor — você percebeu e compreendeu a situação, e agora está projetando o risco de colisão traseira se o motorista atrás de você não conseguir parar.
Consciência situacional coletiva - O fator crítico
Um conceito frequentemente subestimado é a consciência situacional coletiva, o nível agregado de SA de todos os participantes na operação. Este pode incluir os dois pilotos da mesma aeronave, pilotos de diferentes aeronaves, pilotos e controladores aéreos, ou pilotos e pessoal de manutenção.
Um ponto crucial: a consciência situacional coletiva é reduzida ao nível daquele participante com SA mais baixa. Mesmo que um piloto mantenha excelente consciência situacional individual, se seu colega de voo ou o controlador aéreo tiver SA degradada, a segurança operacional está comprometida.
No acidente de Washington DC, múltiplos indicadores de SA coletiva degradada convergiram:
A tripulação do helicóptero pode não ter ouvido claramente o ATC mencionando que a aeronave estava em procedimento de circling
Uma discrepância de altitude não foi resolvida entre piloto e instrutor
A comunicação ATC crítica sobre a instrução de "passar atrás" do CRJ foi parcialmente cortada pela sobreposição de transmissões
Confusão interpretativa ocorreu na cabine do helicóptero sobre qual ação executar
Indicadores de degradação da consciência situacional
O treinamento de CRM, segundo as normas EASA e as práticas de operadoras internacionais, identifica múltiplos marcadores de potencial perda de SA. A pesquisa de incidentes e acidentes demonstra que em quase todas as situações envolvendo perda de SA, pelo menos 3 desses marcadores estavam presentes:
Falha em atingir metas (failure to meet targets)
Procedimentos não documentados ou desvio de SOPs
Violação de mínimos ou limitações operacionais
Falha em monitorar instrumentos e sistemas
Problemas de comunicação — ambiguidade ou falta de clareza
Discrepâncias não resolvidas — conhecimento de erro mas falha em correção
Preocupação ou distração com tarefas não relacionadas
Confusão sobre posição, intenção ou estado
Percepção de necessidade de pressa artificial
Mudanças de última hora (runway changes, planos alterados)
Fadiga e comprometimento dos recursos cognitivos
Complacência — confiança excessiva baseada em experiência passada
Ameaça e gerenciamento de erros (TEM)
A EASA e a aviação profissional global adotaram a estrutura de TEM como evolução do CRM tradicional. TEM reconhece que ameaças e erros são inevitáveis nas operações aéreas diárias. A estrutura exige que tripulações profissionais:
Identifiquem ameaças específicas (não categorias amplas como "aeroporto X")
Discutam estratégias de mitigação antes ou imediatamente após identificar a ameaça
Estabeleçam metas específicas e tenham a disciplina de respeitá-las
Por exemplo, se a ameaça identificada é "pista curta", a estratégia de mitigação deve ser específica: "go-around obrigatório se a aeronave não estiver tocando o solo no ponto de demarcação X" ou "se a velocidade em Y distância for superior a Z, executar go-around".
Defesas contra perda de consciência situacional
Tanto a EASA quanto a SKYbrary recomendam implementação robusta de defesas estruturais:
Fase de planejamento:
Definir objetivos operacionais específicos
Estabelecer prioridades claras e seguir SOPs rigorosamente
Preparar-se para anomalias e desvios esperados
Conduzir avaliações de risco — pensar "e se?"
Gerenciar carga de trabalho antecipadamente
Fase de manutenção:
Comunicação constante entre tripulantes
Briefings sobre expectativas futuras
Comparar estado projetado com objetivos reais
Definir "próximas metas" em cada fase do voo
Detecção de degradação:
Monitorar ambiguidade nas instruções ATC
Identificar fixação excessiva em um único sistema ou problema
Reconhecer tarefas não coordenadas entre tripulantes
Questionar procedimentos não padrão
Limitações da automação e ferramentas disponíveis
Um aspecto crítico frequentemente negligenciado: os sistemas de defesa de segurança possuem limitações operacionais que podem não ser amplamente conhecidas pela tripulação.
No acidente de Washington DC, o TCAS II versão 7.1 a bordo do CRJ estava programado para:
Não fornecer Resolution Advisories (RAs) abaixo de 900 pés AGL
Inibir alertas de tráfego (TA) abaixo de 400 pés AGL
A colisão ocorreu aos 313 pés AGL — dentro da zona onde o TCAS está programado para reduzir suas funções. Portanto, o sistema designado para prevenir colisões em ar foi efetivamente desabilitado pela altitude da colisão.
Este é um exemplo perfeito de porquê dependência excessiva em automação pode comprometer a consciência situacional. Os pilotos profissionais devem conhecer as limitações de suas defesas tecnológicas.
O conceito de "Viés de Continuação" (Continuation Bias)
Um dos maiores inimigos da consciência situacional é o viés de continuação, a tendência de continuar um curso de ação mesmo quando sinais claros indicam que tal ação não é prudente.
Pilotos profissionais devem reconhecer que quando múltiplos marcadores de SA degradada começam a aparecer, é tempo de desacelerar, confirmar que o curso atual é apropriado e, se necessário, ativar o Plano B. Ironicamente, conforme observado por especialistas em CRM, uma das palavras mais poderosas (e menos pronunciadas por pilotos) é: "unable" (incapaz).
Integração com requisitos regulatórios
A ICAO Annex 6, que governa operações comerciais internacionais, e as especificações da EASA para treinamento CRM, exigem que operadores implementem:
Treinamento recorrente em consciência situacional integrado com treinamento técnico
Exercícios práticos em simulador envolvendo degradação de SA
Treinamento em Threat and Error Management específico para cada operador
Desenvolvimento de resiliência além de procedimentos de rotina
Conclusão
A consciência situacional não é um conceito abstrato — é a base prática sobre a qual repousa toda a segurança operacional profissional. Envolve percepção precisa do ambiente, compreensão correta de seu significado e capacidade de projetar desenvolvimentos futuros.
Para pilotos profissionais, a lição do acidente de Washington DC e de investigações históricas é clara: reconheça os marcadores de SA degradada conforme aparecem, resolva discrepâncias antes que se acumulem, mantenha comunicação precisa com sua tripulação e controladores, questione ambiguidades e, acima de tudo, reconheça que nenhum voo é tão crítico que valha o risco de voar com consciência situacional inadequada.
Como afirma a comunidade internacional de aviação profissional:
— "o voo mais seguro é aquele que nunca é iniciado quando as condições, técnicas ou operacionais, degradam a consciência situacional coletiva da operação".
Bons voos!
Comandante Luiz Bassani
Referências
Forrest, S. (2025). "Do you know what's going on around you?" Professional Pilot Magazine, novembro 2025.
European Union Aviation Safety Agency (EASA). (2015). Crew Resource Management (CRM) Training — Decision 2015/022/R and 2015/023/R.
SKYbrary. (2025). "Enhancing Situational Awareness." Flight Operations Briefing Notes.
Endsley, M. R. (1995). Toward a Theory of Situation Awareness in Dynamic Systems. Human Factors, Vol. 37, No. 1, pp. 32-64.
Wickens, C. D. (2008). "Situation Awareness: Review of Mica Endsley's 1995 Model." PubMed Central.
International Civil Aviation Organization (ICAO). Annex 6, Part I - Operation of Aircraft.
U.S. Coast Guard Definition of Situational Awareness, adaptada para aviação comercial.
EASA (2017). CRM Training Implementation — Recommended Practices and Information for Air Operators.
COLEÇÃO ASAS DO CONHECIMENTO
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Coleção Asas do Conhecimento – Lançamento Internacional
No próximo bimestre estarão disponíveis para compra online, em português e inglês, os três primeiros volumes desta série de 18 livros, que já nasce como referência para profissionais e apaixonados pela aviação:
Volume 1 – Introdução à Aviação e ao Papel do Piloto
Volume 2 – Fatores Humanos e Fisiológicos na Segurança de Voo
Volume 3 – A Importância do Conhecimento Aeronáutico
Mais que livros, estes guias representam uma verdadeira transformação na formação e no desenvolvimento dos players da aviação – sejam cadetes, pilotos experientes, instrutores, gestores de segurança ou entusiastas. Eles oferecem um caminho sólido para dominar a arte e a ciência de voar, integrando fundamentos técnicos, fatores humanos, práticas internacionais e visão de futuro.





