Voos com um único piloto, será que os fabricantes conseguirão convencer os passageiros?
"Como você se sentiria ao embarcar em um avião com apenas um piloto no cockpit?"
Imagem IA system
Grandes fabricantes, como Airbus e Dassault, estão impulsionando a ideia de voos com um único piloto, motivados pela busca por eficiência e redução de custos. No entanto, essa ideia tem encontrado resistência tanto do público quanto da comunidade global de pilotos. A verdadeira questão não é apenas se as operações com um piloto são tecnicamente possíveis, mas se o público e os especialistas em segurança aceitarão essa mudança.
Confiança e Segurança
Pesquisas mostram que a maioria dos passageiros têm relutância e se sente desconfortável com a ideia de voar com apenas um piloto, especialmente em situações de emergência. O conforto psicológico que os passageiros têm ao saber que dois pilotos experientes estão no controle da aeronave, indica que se algo der errado, há outro piloto disponível para intervir.
Os avanços tecnológicos na aviação, sempre enfrentaram resistência inicial e o sistema fly-by-wire é um exemplo clássico. Introduzido comercialmente com o Airbus A320 no final dos anos 1980, o fly-by-wire substituiu controles mecânicos diretos por sinais eletrônicos, permitindo que computadores controlassem as superfícies de voo de maneira mais precisa. Na época, muitos pilotos e passageiros expressaram preocupações sobre confiar em computadores para operações tão críticas, temendo a perda de controle humano direto. No entanto, ao longo dos anos, o sistema provou ser extremamente seguro e eficiente, sendo agora amplamente aceito e utilizado em aeronaves comerciais e militares.
Na perspectiva dos pilotos o papel do segundo piloto na divisão da carga de trabalho, gestão de emergências e monitoramento da segurança, especialmente em situações anormais, como falhas de sistemas ou incapacitação do piloto, hoje são cruciais para a segurança de voo. Operações com um piloto podem aumentar a fadiga, especialmente em voos de longa duração, o que comprometeria a segurança.
A importância de dois pilotos para tomar decisões rápidas hoje são implantadas pelo treinamento em equipe de dois, com a ausência de um segundo piloto poderá atrasar a resposta ou comprometer o julgamento em situações críticas de emergência. Os contra-argumentos dos fabricantes de que a tecnologia pode mitigar esses riscos, cria uma expectativa que essas alegações podem ser simplistas ou otimistas demais.
Tecnologia e automação, estamos prontos?
As cabines modernas e sistemas avançados reduziram a carga de trabalho dos pilotos, mas ainda exigem supervisão humana. Quais serão os limites da tecnologia atual em lidar com cenários complexos ou imprevisíveis.
Os fabricantes afirmam que as operações com um único piloto representam um salto tecnológico. No entanto será que essa análise crítica da automação está realmente pronta para indicar a substituição do julgamento humano. Como exemplo: uma falha total do sistema de piloto automático em um voo de longo curso, obrigaria o piloto a voar o avião manualmente durante horas?
A dependência excessiva da automação poderá criar complacência ou confusão, especialmente quando é necessário que o piloto intervenha em momentos críticos.
O papel dos reguladores
Supervisão reguladora da Agência Europeia para a Segurança da Aviação (EASA), na avaliação da segurança das operações com um piloto, enfatiza publicamente que os padrões de segurança não serão comprometidos. No entanto, existe uma possível tensão entre a missão de segurança da EASA e sua aparente proximidade com os fabricantes.
Lobby nos bastidores
As agências reguladoras podem ser influenciadas pelo lobby da indústria, com foco nos supostos esforços da EASA para pressionar a ICAO a aceitar operações com um único piloto. Em uma apresentação em 2022, a Airbus destacou seu plano de avançar com o conceito de "Extended Minimum Crew Operations" (eMCO), inicialmente focado em voos de longo curso, onde o piloto único seria acompanhado por sistemas avançados de automação, com o segundo piloto em descanso.
As campanhas das associações de pilotos
Os esforços de grandes organizações de pilotos, como a Associação Europeia de Pilotos (ECA), a Associação de Pilotos de Linha Aérea (ALPA) e a Federação Internacional das Associações de Pilotos de Linhas Aéreas (IFALPA) têm lançado campanhas como o site www.safetystartswith2.com, destacando a necessidade de dois pilotos para manter o nível atual de segurança.
Essas associações estão trabalhando para informar passageiros e tomadores de decisão, aumentando a conscientização, contrabalanceando a narrativa dos fabricantes com dados, estudos de casos e testemunhos de especialistas. Esse futuro debate deve se desenrolar nos próximos anos, com crescente pressão dos fabricantes de um lado e a resistência dos pilotos e defensores da segurança do outro.
Conclusão
A mudança para operações com um único piloto não deve ser vista apenas como uma evolução tecnológica ou uma simplificação de normas regulatórias. No cerne dessa questão, está algo muito mais fundamental: a confiança pública e a segurança.
A história da aviação moderna é marcada por melhorias contínuas em tecnologia, mas também pela insistência em preservar a segurança, acima de qualquer ganho financeiro ou de eficiência.
A presença de dois pilotos no cockpit não é apenas uma redundância técnica; é um pilar essencial da operação segura, uma barreira final contra erros humanos e imprevistos tecnológicos. A confiança que os passageiros depositam na aviação comercial não vem apenas dos avanços em automação, mas da garantia de que seres humanos qualificados estão lá para tomar decisões rápidas e críticas quando necessário.
Os argumentos dos fabricantes sobre a viabilidade de um único piloto, baseados em tecnologias ainda não totalmente maduras, muitas vezes negligenciam a importância dessa percepção pública. Afinal, a aceitação do passageiro vai além do que está nos manuais técnicos ou nas aprovações regulatórias. O público quer sentir-se seguro e confiante de que, em um momento de crise, não será uma máquina ou um único piloto sobrecarregado que terá de resolver a situação sozinho.
Portanto, enquanto os avanços tecnológicos são inegáveis, a verdadeira questão a ser enfrentada pelos fabricantes e reguladores é se essa mudança conseguirá preservar a confiança no transporte aéreo e garantir o nível de segurança que o público espera e merece.
Devemos permitir que a busca por eficiência supere as lições aprendidas em décadas de segurança na aviação?
Comandante Bassani 09/2024
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